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domingo, 2 de novembro de 2008

MARTINHO LUTERO


Lutero nasceu no dia 10 de novembro de 1483 em Eisleben, Alemanha. Preocupado com a salvação, o jovem Martinho Lutero decidiu tornar-se monge. Durante seu estudo, sempre o acompanhava a pergunta: "Como posso conseguir o amor e o perdão de Deus?" Lutero foi descobrindo ao longo dos seus estudos que para ganhar o perdão de Deus ninguém precisava castigar-se ou fazer boas obras, mas somente ter fé em Deus. Com isso, ele não estava inventando uma doutrina, mas retomando pensamentos bíblicos importantes que estavam à margem da vida da igreja naquele momento.
Lutero decidiu tornar públicas essas idéias e elaborou 95 teses, reunindo o mais importante de sua (re)descoberta teológica, e fixou-as na porta da igreja do castelo de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517. Ele pretendia abrir um debate para uma avaliação interna da Igreja, pois acreditava que a Igreja precisava ser renovada a partir do Evangelho de Jesus Cristo.
Em pouco tempo toda a Alemanha tomou conhecimento do conteúdo dessas teses e elas espalharam-se também pelo resto da Europa. Embora tivesse sido pressionado de muitas formas - excomungado e cassado - para abandonar suas idéias e os seus escritos, Lutero manteve suas convicções. Suas idéias atingiram rapidamente o povo e essa divulgação foi facilitada pelo recém inventado sistema de impressão de textos em série.
O Movimento da Reforma espalhou-se pela Europa. Em 1530 os líderes protestantes escreveram a “Confissão de Augsburgo”, resumindo os elementos doutrinários fundamentais do luteranismo.
Em 1546, no dia 18 de fevereiro, aos 62 anos, Martinho Lutero faleceu. Finalmente, em 1555, o Imperador reconheceu que haviam duas diferentes confissões na Alemanha: a Católica e a Luterana.



Leia abaixo, na íntegra, a Confissão de Augsburgo
Prefácio

Invictíssimo Imperador, César augusto, Senhor clementíssimo. Porquanto Vossa Majestade Imperial convocou uma dieta imperial para Augsburgo, destinada a deliberar sobre esforços bélicos contra o turco, adversário atrocíssimo, hereditário e antigo do nome e da religião cristãos, isto é, sobre como se possa resistir ao seu furor e ataques com preparação bélica durável e permanente; e depois também quanto às dissensões com respeito a nossa santa religião e fé cristã, e a fim de que neste assunto da religião as opiniões e sentenças das partes, presentes umas às outras, possam ser ouvidas, entendidas e ponderadas entre nós, com mútua caridade, brandura e mansidão, para que, corrigido o que tem sido tratado incorretamente nos escritos de um e outro lado, possam essas coisas ser compostas e reduzidas a uma só verdade simples e concórdia cristã, de forma tal, que, quanto ao mais, seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira; e para que, assim como todos estamos e militamos sob um mesmo Cristo, possamos da mesma forma viver em uma só igreja cristã, em unidade e concórdia; e porque nós, os abaixo assinados, assim como os outros eleitores, príncipes e ordens, fomos chamados à supramencionada dieta, prontamente viemos a Augsburgo, a fim de nos sujeitarmos obedientes ao mandado imperial, e, queremos dizê-lo sem intuito de jactância, estivemos entre os primeiros a chegar.
Como, entretanto, Vossa Majestade Imperial também, aqui em Augsburgo, no próprio início desta dieta, fez que, entre outras coisas, se indicasse aos eleitores, aos príncipes e a outras ordens do Império que as diversas ordens do Império, por força do edito imperial, deveriam propor e submeter suas opiniões e juízos nas línguas alemã e latina, e como quarta-feira passada, após deliberação, se respondeu, em seguida, a Vossa Majestade Imperial que de nossa parte submeteríamos os artigos de nossa Confissão sexta-feira próxima, por isso, em obediência à vontade de Vossa Majestade Imperial, oferecemos, nesta matéria da religião, a confissão de nossos pregadores e de nós mesmos, tal qual eles, haurindo da sagrada Escritura e da pura palavra de Deus, ensinaram essa doutrina até hoje entre nós.
Agora, se os demais leitores, príncipes e ordens do Império igualmente apresentarem, de conformidade com a precitada indicação de Majestade Imperial, em escritos latinos e germânicos, sua opiniões na questão religiosa, estamos dispostos, com a devida obediência a Vossa Majestade Imperial, como nosso Senhor clementíssimo, a conferir, amigavelmente, com os precitados príncipes, nossos amigos, e com as ordens, sobre vias idôneas e toleráveis, a fim de que cheguemos a uma acordo, até onde tal se possa fazer honestamente, e, discutida a questão entre nós, dessa maneira, com base nos propostos escritos de ambas as partes, pacificamente, sem contenda odiosa, possa a dissensão, com a ajuda de Deus, ser dirimida e haja retorno a uma só verdadeira e concorde religião. Assim como todos estamos e militamos sob o mesmo Cristo, devemos outrossim confessar um só Cristo, segundo o teor de edito de Vossa Majestade Imperial, e todas as coisas devem ser conduzidas em acordo com a verdade de Deus, e pedimos a Deus com ardentíssimas preces que auxilie esta causa e dê a paz.
Se, porém, no que diz respeito aos demais eleitores, príncipes e ordens, que constituem a outra parte, esse tratamento da causa não se processar segundo o teor de edito de Vossa Majestade Imperial, e ficar sem fruto, nós outros em todo o caso deixamos o testemunho de que nada retemos que de algum modo possa conduzir a que se efetue uma concórdia cristã possível de fazer-se com Deus e de boa consciência, como também Vossa majestade Imperial, e bem assim os demais eleitores e ordens do Império, e quantos forem movidos por sincero amor e zelo pela religião, quantos derem ouvidos a essa causa com equanimidade, dignar-se-ão, bondosamente, a reconhecer e entender dessa Confissão nossa e dos nossos.
Como Vossa Majestade Imperial também bondosamente significou, não uma, senão muitas vezes, aos eleitores, príncipes e ordens do Império, e na Dieta de Espira, celebrada em 1526 A. D., fez que fosse lido e proclamado, de acordo com a forma dada e prescrita de Vossa imperial instrução, que Vossa Majestade Imperial, nesse assunto de religião, por certas razões, que então foram alegadas, não queria decidir, mas queria empenhar-se junto ao Romano Pontífice a favor da reunião de um concílio, conforme também essa questão foi mais amplamente exposta, faz um ano, na próxima-passada Dieta de Espira, onde Vossa Majestade Imperial, por intermédio do Governante Fernando, rei da Boêmia e da Hungria, clemente amigo e Senhor nosso, e além disso através do embaixador e dos comissários imperiais, fez que, entre outras coisas, fosse apresentado, segundo a instrução, o seguinte: que Vossa Majestade Imperial notara e ponderara a resolução do representante de Vossa Majestade Imperial no Império, bem como do presidente e dos conselheiros do regime imperial, e dos legados de outras ordens que se reuniram em Ratisbona, concernente à reunião de um concílio geral, e que Vossa Majestade Imperial, outrossim, julgara que seria útil reunir um concílio, e que Vossa Majestade Imperial não duvidou de que seria possível induzir o Pontífice Romano a celebrar um concílio geral, porquanto as questões que então eram tratadas entre Vossa Majestade Imperial e o Romano Pontífice avizinhavam-se de uma concórdia e reconciliação cristã. Por isso Vossa Majestade Imperial bondosamente significava que se empenharia no sentido de que o Romano Pontífice consentisse, o quanto antes possível, em congregar tal concílio, através da emissão de cartas.
Se, pois, o resultado for tal, que essas dissensões não sejam compostas amigavelmente entre nós e a outra parte, oferecemos aqui, de superabundância, em toda obediência perant e Vossa Majestade Imperial, que haveremos de comparecer e defender a causa em tal concílio geral, cristão e livre, para cuja reunião sempre tem havido, em razão de gravíssimas deliberações, em todas as convenções imperiais celebradas durante os anos de reinado de Vossa Majestade Imperial, magno consenso da parte dos eleitores, príncipes e ordens do Império. Para esse concílio e para Vossa Majestade Imperial mesmo já anteriormente apelamos da maneira devida e na forma da lei, nessa questão, incontestavelmente a maior e mais grave. A esse apelo continuamos a aderir. E não intentamos nem podemos abandoná-lo, por esse ou outro documento, a menos que a causa fosse amigavelmente ouvida e levada a uma concórdia cristã, de acordo com o teor da citação imperial. Quanto a isso, também aqui testificamos publicamente.
Introdução
"Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está nos céus" (Mt 10,32s). Estas palavras de Jesus nos dizem o que é uma confissão "confissão" é dizer sim ou não para Jesus Cristo, tomar partido em favor de Jesus ou contra ele. Confissão é discipulado. Uma tal confissão quer ser a Confissão de Augsburgo que, neste ano de 1980, está comemorando 450 anos. Ela é, ao lado da Sagrada Escritura e do Catecismo Menor de Martin Lutero, o documento básico, através do qual expressamos o que Jesus Cristo é para nós. A Confissão de Augsburgo é também aquele escrito que permitiu entre nós, aqui no Brasil, o surgimento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Éramos, originalmente, quatro igrejas independentes (o Sínodo Riograndense, o Sínodo Evangélico de Santa Catarina e Paraná, a Igreja Evangélica Luterana no Brasil e o Sínodo do Brasil Central) que descobriram a sua unidade na Sagrada Escritura, no Catecismo Menor de Lutero e na Confissão de Augsburgo. Desde 1949 nós confessamos a nossa fé em Jesus, conjuntamente, através da Confissão de Augsburgo.
As palavras da Confissão de Augsburgo foram escritas em uma situação bem especial. Todos nós conhecemos a Martin Lutero e sabemos que por causa de uma descoberta que ele fez, por volta de 1517, toda a situação religiosa na Alemanha ficou bastante agitada. Lutero descobriu que Deus não é um Deus que quer que o homem morra, mas viva! Deus não quer condenar, mas salvar o homem. Quando fez esta descoberta, o reformador não ficou com isso para si. Ele a anunciou. Sua descoberta se alastrou como pólvora por toda a Alemanha. Sempre que o Evangelho se liberta, não há mais quem o segure. Ele tomou conta do apóstolo Paulo, de Santo Agostinho, de Lutero e de milhares de contemporâneos de Lutero.
Onde o Evangelho age, também surgem mudanças. E, na Alemanha começaram a ocorrer mudanças. A partir do Evangelho se ia descobrindo novas realidades. Surgiu uma nova concepção de igreja, de santo ceia, houve casamentos de pastores, monges abandonavam conventos. Com isso ocorriam mudanças. A Alemanha se via dividida em dois campos, os adeptos da velha e da nova fé. O culto passou a ser oficiado em língua alemã, havia santa ceia sob duas espécies, comunidades escolhendo seus pastores. O povo criava novos hinos, onde se cantava da liberdade trazida por Deus em Cristo. Muitos cristãos, lendo a Bíblia e encontrando a proibição de imagens, foram mais longe e começaram a destruir imagens, altares, etc.
Esta liberdade significava perigo para os cristãos da nova fé. Desde o século VI, fé católica e fidelidade ao Estado eram uma e a mesma coisa. Quem passava a ensinar coisa diferente daquela que até agora fora ensinada, em questões de fé, era herege e, ao mesmo tempo, traidor da pátria. Por algum tempo, porém, puderam ocorrer mudanças no campo religioso, na Alemanha, porque o Imperador Carlos V, o homem que tinha que zelar pela fidelidade política e religiosa, estava empenhado em lutas com seus dois principais opositores: o Papa e o rei da França. Em 1529 a coisa, porém, mudou. Neste ano Carlos V venceu a seus opositores e anunciou, por carta, aos príncipes alemães a convocação de uma Dieta, i.é., uma reunião dos representantes dos principados e cidades que formavam o Império Alemão. Esta Dieta ocorreria na cidade de Augsburgo e deveria iniciar a 8 de abril de 1530. O Imperador vinha disposto a "reparar o ultraje que fora feito a Cristo". Na sua opinião as mudanças feitas, a partir do Evangelho, pelos adeptos da nova fé, eram um ultraje a Cristo. Atrasos na viagem do Imperador fizeram com que a Dieta só se iniciasse em junho de 1530.
Quando o príncipe eleitor da Saxônia, - território onde Lutero residia e que tinha na cidade de Wittenberg sua capital, -recebeu a convocação para a Dieta, procurou entrar em contato com seus partidários. Eram eles Felipe de Hesse, Ernesto de Lüneburgo, Jorge de Ansbach, Henrique de Mecklenburgo e Wolfgang de Anhalt. Nas cartas enviadas, João, o Constante, -é este o nome do príncipe eleitor da Saxônia - procurou mover seus partidários a se fazerem presentes na Dieta, para justos poderem difundir e defender a fé evangélica. As respostas não foram muitas alentadoras, pois mostravam que não havia unanimidade de pensamento. Enquanto alguns viam a importância da Dieta na defesa da "fé e do sacramento", outros julgavam ser mais importante quebrar a hegemonia política do Imperador. Também entre as cidades não havia unanimidade. Essa situação era perigosa. Diante da inatividade de seus partidários, o príncipe eleitor encarregou a Universidade de Wittenberg com a elaboração de um documento no qual fosse responsabilizadas as mudanças havidas na Igreja em seu território. Este documento recebeu o nome de "Artigos de Torgau".
Quando se dirigiu para a Dieta de Augsburgo, o príncipe João, o Constante, levou consigo, entre outros conselheiros, a Felipe Melanchthon, colaborador de Lutero e professor na Universidade de Wittenberg. Lutero não pode ir junto por estar banido. Como o Imperador tardasse em chegar a Augsburgo, João, o Constante, encarregou Melanchthon de elaborar um novo escrito que abrangesse os Artigos de Torgau e outros escritos anteriores. Este escrito nós conhecemos, hoje, sob o nome de Confissão de Augsburgo. Em maio de 1530 o escrito foi enviado a Lutero que a ele se referiu da seguinte maneira: "Eu li a apologia (defesa) de Malanchthon, a qual me satisfaz e eu nada sei como melhorá-la ou modificá-la, o que também não conviria, já que eu não consigo manifestar-me de modo tão manso e suave. Cristo, nosso Senhor, ajude que ela traga grandes frutos, como nós esperamos e pedimos."
Em 15 de junho de 1530 o Imperador entrou em Augsburgo. No dia seguinte era festa de Corpus Christi. Os príncipes evangélicos negaram-se a obedecer a ordem do Imperador de participar da procissão. Foi um ato de coragem, mas também de perigosa desobediência. A chegada do Imperador fez com que os príncipes evangélicos que ainda vacilavam em princípios de 1530, se unissem agora, assumindo em conjunto o documento de Melanchthon.
Carlos V quis que o documento fosse simplesmente entregue. Os príncipes, porém, quiserem confessar sua fé publicamente e conseguiram que o documento fosse lido perante toda a Dieta. Essa leitura ocorreu no dia 25 junho de 1530, às 15 horas. O texto foi lido em latim e em alemão. Após a leitura, o imperador proibiu a divulgação do texto. Mas, em pouco tempo ele era divulgado em toda a Alemanha.
Ao saber do ocorrido, Lutero viu cumpridas as palavras do Salmo 119.46: "Falarei dos teus testemunhos na presença dos reis, e não me envergonharei".
A Confissão de Augsburgo é uma pública confissão de fé, uma confissão do senhorio de Jesus Cristo. A confissão como tal foi apresentada em hora de perigo. Ali, em Augsburgo, nossos pais luteranos fizeram uma pública confissão de fé, de sua fé em Jesus Cristo.
O Imperador não aceitou o documento, mas ele veio a ser a base para as igrejas luteranas na Alemanha e, hoje, em todo o mundo, também aqui entre nós no Brasil.
A confissão de Augsburgo abrange ao todo 28 artigos que estão divididos em duas partes. Na primeira parte deparamo-nos com "Artigos de fé e de doutrina" (Artigos 1-21). Eles se ocupam com três questões básicas:
a. Os artigos 1-3 pretendem demonstrar a concordância com a doutrina da Igreja Antiga a respeito de Deus (1), origem do pecado (2) e cristologia (3).
b. Nos artigos 4-6 e 18-20 é apresentada a compreensão reformatória do Evangelho: Justificação (4), ministério da pregação (5) (seria mais correto se o artigo fosse intitulado de "meditação do Espírito Santo, através de Palavra e Sacramento"), nova obediência (6), livre arbítrio e origem do pecado (18-19), fé e boas obras (20).
c. Nos artigos 9-15 deparamo-nos com problemas relativos à Igreja: Conceito de Igreja (7-8), sacramentos (9-13) (note-se que aqui a confissão e o arrependimento estão incluídos entre os sacramentos, sem, no entanto, serem declarados sacramentos), ordem e ritos eclesiásticos (14-15).
Além dessas três questões básicas, encontramos ainda três questões específicas: autoridades civis (16), segunda vinda de Cristo para juízo (17), culto aos santos(21).
Na segunda parte (artigos 22-28) deparamo-nos com "Artigos sobre que há divergência e em que se trata dos abusos que foram corrigidos": Das duas espécies do sacramento (22), Do matrimônio dos sacerdotes (23), Da Missa (24),da Confissão (25), Da distinção de manjares (26), dos votos monásticos (27), Do poder eclesiástico (28). No final são abordados sumariamente, temas como indulgências, peregrinações, excomunhão, etc.

Martin Dreher
artigo 1 - De Deus
As igrejas ensinam entre nós com magno consenso que o decreto do Concílio de Nicéia sobre a unidade da essência divina e sobre as três pessoas é verdadeiro e deve ser crido sem qualquer dúvida. A saber: que há uma só essência divina, a qual é chamada Deus e é Deus, eterno, incorpóreo, impartível, de incomensurável poder, sabedoria, bondade, criador e conservador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E contudo há três pessoas, da mesma essência e poder, e co-eternas: o Pai, o filho e o Espírito Santo. E a palavra "pessoa" usam-na no sentido em que a usaram, nesta questão, os escritores eclesiásticos, para significar não uma parte ou qualidade em outra coisa, mas aquilo que subsiste por si mesmo.
Condenam todas as heresias surgidas contra esse artigo, como por exemplo os maniqueus, que punham dois princípios, um bom e um mau; também os valentinianos, arianos, eunomianos, maometanos e todos os outros a eles semelhantes. Condenam, outrossim, os samosatenos, antigos e novos, os quais, ao sustentarem que existe apenas uma pessoa, retoricam astuta e impiamente sobre o Verbo e o Espírito Santo, dizendo que não são pessoas distintas, porém que "Verbo" significa palavra falada, e "Espírito", um movimento criado nas coisas.
artigo 2 - Do Pecado Original
Ensinam também que depois da queda de Adão (Gn3) todos os homens, propagados segundo a natureza, nascem com pecado, isto é, sem temor de Deus, sem confiança em Deus, e com concupiscência, e que essa enfermidade ou vício original verdadeiramente é pecado, que condena e traz morte eterna ainda agora aos que não renascem pelo batismo e pelo Espírito Santo.
Condenam aos pelagianos e a outros que negam seja pecado o vício original e que, diminuindo a glória do mérito e dos benefícios de Cristo, argumentam que o homem pode ser justificado diante de Deus por forças próprias, da razão.
artigo 3 - Do Filho de Deus
Ensinam outrossim que o Verbo, isto é, o Filho de Deus, assumiu a natureza humana no seio da bem-aventurada Virgem Maria. De sorte que há duas naturezas, a divina e a humana, inseparavelmente conjungidas na unidade da pessoa, um só Cristo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, que, nascido da Virgem Maria, veramente sofreu, foi crucificado, morreu e foi sepultado, a fim de reconciliar-nos com o Pai e ser um sacrifício, não só pela culpa original, mas ainda por todos os pecados atuais dos homens. Também desceu ao inferno e verdadeiramente ressuscitou no terceiro dia. Depois subiu ao céu, para assentar-se à desta do Pai, perpetuamente reinar e dominar sobre todas as criaturas, e santificar os que nele crêem, pelo envio, aos seus corações, do Espírito Santo, que os reja, console, vivifique, e os defenda contra o diabo e o poder do pecado. O mesmo Cristo voltará visivelmente, a fim de julgar os vivos e os mortos, etc., de acordo com o Símbolo dos Apóstolos.
artigo 4 - Da Justificação
Ensinam também que os homens não podem ser justificados diante de Deus por forças, méritos ou obras próprias, senão que são justificados gratuitamente, por causa de Cristo, mediante a fé, quando crêem que são recebidos na graça e que seus pecados são remitidos por causa de Cristo, o qual através de sua morte fez satisfação pelos nossos pecados. Essa fé atribui-a Deus como justiça aos seus olhos. Rm 3 e 4. (Especialmente 3, 21ss e 4,5)
artigo 5 - Do Ministério Eclesiástico
Para que alcancemos essa fé, foi instituído o ministério que ensina o evangelho e administra os sacramentos. Pois mediante a palavra e pelos sacramentos, como por instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a Deus, naqueles que ouvem o evangelho. Isto é, que Deus, não em virtude de méritos nossos, mas por causa de Cristo justifica os que crêem serem recebidos na graça por amor de Cristo. Gl3: "a fim de que recebêssemos pela fé a promessa do Espírito".
Condenam aos anabatistas e a outros que pensam vir o Espírito Santo aos homens sem a palavra externa, através de suas próprias preparações e obras.
artigo 6 - Da Nova Obediência
Ensinam também que aquela fé deve produzir bons frutos e que é necessário se façam as boas obras ordenadas por Deus, por causa da vontade de Deus, não para confiarmos que merecemos por essas obras a justificação diante de Deus. Pois a remissão dos pecados e a justificação são apreendidas pela fé, como também testifica a palavra de Cristo: "Quando tiverdes feito tudo isso, dizei: Somos servos inúteis." A mesma coisa ensinam também os antigos escritores eclesiásticos. Pois Ambrósio diz: "Foi estabelecido por Deus que quem crê em Cristo é salvo sem obra, pela fé somente, recebendo a remissão dos pecados de graça."
artigo 7 - Da Igreja
Ensinam outrossim que sempre permanecerá uma santa igreja. E a igreja é a congregação dos santos na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente. E para a verdadeira unidade da igreja basta que haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos. Não é necessário que as tradições humanas ou os ritos e cerimônias instituídos pelos homens sejam semelhantes em toda a parte. Como diz Paulo: "Uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos", etc. (Ef4,4s.)
artigo 8 - Que é a Igreja?
Ainda que a igreja, propriamente, é a congregação dos santos e verdadeiramente crentes, contudo, visto que nesta vida muitos hipócritas e maus lhe estão misturados, pode fazer-se uso dos sacramentos administrados por maus, segundo a palavra de Cristo: "Na cadeira de Moisés estão sentados os escribas e os fariseus," etc. Tanto os sacramentos quanto a palavra são eficazes por causa da ordenação e do mandado de Cristo, mesmo quando administrados por maus.
Condenam os donatistas e outros a eles semelhantes, os quais negavam fosse lícito fazer uso do ministério de maus na igreja e julgavam que o ministério dos maus era inútil e ineficaz.
artigo 9 - Do Batismo
Do batismo ensinam que é necessário para a salvação, que pelo batismo é oferecida a graça de Deus, e que devem ser batizadas as crianças, as quais, oferecidas a Deus pelo batismo, são recebidas na graça de Deus.
Condenam os anabatistas, que desaprovam o batismo infantil e afirmam que as crianças são salvas sem o batismo.
artigo 10 - Da Ceia do Senhor
Da ceia do Senhor ensinam que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes e são distribuídos aos que comungam na ceia do Senhor. E desaprovam os que ensinam de maneira diferente.
artigo 11 - Da Confissão
Da confissão ensinam que a absolvição particular deve ser mantida nas igrejas, ainda que na confissão não é necessária a enumeração de todos os delitos, pois tal é impossível, segundo o Salmo: "Os delitos, quem os discerne?" (Sl19,12)
artigo 12 - Do Arrependimento
Do arrependimento ensinam que os caídos depois do batismo podem alcançar a remissão dos pecados a qualquer tempo, quando se convertem, e que a igreja deve conceder a absolvição a tais que voltam ao arrependimento. Mas o arrependimento consiste, propriamente, nas duas partes seguintes: uma é a contrição, ou os terrores metidos na consciência pelo reconhecimento do pecado; a outra é a fé, que nasce do evangelho, ou absolvição, e crê que os pecados são perdoados por causa de Cristo, consola a consciência e libera dos terrores. Depois devem seguir-se boas obras, que são os frutos do arrependimento.
Condenam os anabatistas, que negam possam perder o Espírito Santo os que já uma vez foram justificados; também os que argumentam chegarem alguns, nesta vida, a perfeição tal, que não podem pecar.
São condenados outrossim os novacianos, que não queriam absolver os que, caídos depois do batismo, retornaram à penitência.
Rejeitam-se ainda os que não ensinam alcançar-se a remissão dos pecados pela fé, ordenando-nos, ao contrário, que mereçamos a graça mediante satisfações nossas.
artigo 13 - Do Uso dos Sacramentos
Do uso dos sacramentos ensinam que os sacramentos foram instituídos não apenas para serem notas de profissão entre os homens, porém, mais, a fim de serem sinais e testemunhos da vontade de Deus para conosco, propostos para despertar e confirmar a fé nos que deles fazem uso. Os sacramentos, por isso, devem ser usados de modo que se junte a fé, a qual crê nas promessas que são oferecidas e mostradas pelos sacramentos.
artigo 14 - Da Ordem Eclesiástica
Da ordem eclesiástica ensinam que ninguém deve publicamente ensinar na igreja ou administrar os sacramentos a menos que seja legitimamente chamado.
artigo 15 - Dos Ritos Eclesiásticos
Dos ritos eclesiásticos ensinam que devem ser conservados aqueles usos que podem ser conservados sem pecado e são úteis à tranqüilidade e à boa ordem na igreja, tais como certos feriados, festas e coisas semelhantes.
Com respeito a tais coisas, entretanto, admoestam-se os homens que não se onerem as consciências, como se tal culto fosse necessário à salvação.
Também se admoestam os homens que tradições humanas instituídas para tornar a Deus propício, merecer a graça e satisfazer pelos pecados adversam o evangelho e a doutrina da fé. Razão por que votos e tradições concernentes a comidas, dias, etc. Instituídos com a finalidade de merecerem a graça e satisfazerem pelos pecados, são inúteis e contrários ao evangelho.
artigo 16 - Das Coisas Civis
Das coisas civis ensinam que ordenações civis legítimas são boas obras de Deus e que é lícito aos cristãos exercer ofícios civis, ser juízes, julgar segundo as leis imperiais e outras leis vigentes, impor penas segundo o direito, fazer, segundo o direito, guerra, prestar serviço militar, fazer contratos legais, possuir propriedade, jurar por ordem dos magistrados, ter esposa, casar-se.
Condenam os anabatistas, que interdizem essas coisas civis aos cristãos.
Também condenam os que põem a perfeição evangélica não no temor de Deus e na fé, porém na fuga aos negócios civis. Porque o evangelho ensina a justiça eterna do coração. Entrementes, não destrói a ordem estatal ou familiar, senão que exige muitíssimo que sejam preservadas como ordenações de Deus, e que se exerça, em tais ordenações, o amor. Por isso os cristãos devem necessariamente obedecer aos seus magistrados a às leis, a menos que exijam se peque, pois neste caso devem obedecer mais a Deus do que a homens. Atos 5.
artigo 17 - Da Volta de Cristo para o Juízo
Ensinam, outrossim, que na consumação do mundo Cristo aparecerá para o juízo e ressuscitará todos os mortos. Aos piedosos e eleitos dará a vida eterna e perpétuas alegrias; mas aos homens ímpios e aos diabos condenará, para serem atormentados sem fim.
Condenam os anabatistas, os quais pensam que os castigos dos homens condenados e dos diabos terá um fim.
Condenam também os outros, que agora difundem opiniões judaicas: que antes da ressurreição dos mortos os piedosos tomarão posse do reino do mundo, sendo os ímpios subjugados em toda a parte.
artigo 18 - Do Livre Arbítrio
Sobre o livre arbítrio ensinam que a vontade humana tem certa liberdade para operar justiça civil e escolher entre as coisas sujeitas à razão. Não tem, entretanto, a força para operar, sem o Espírito Santo, a justiça de Deus, ou a justiça espiritual, porque o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus. Essa justiça, porém, se realiza nos corações quando, pela palavra, é recebido o Espírito Santo. É o que diz, em outras tantas palavras, Agostinho, no Livro III do Hypognosticon: "Concedemos que todos os homens têm livre arbítrio, que inclui o juízo racional, não, porém, no sentido de que seja capaz, nas coisas que dizem respeito a Deus, a começá-las sem Deus ou seguramente completá-las, mas tão-somente nas obras desta vida, quer boas, quer más. Por obras boas entendo as que se originam do bem natural, isto é, querer trabalhar no campo, querer comer e beber, querer ter um amigo, querer possuir vestimenta, querer construir uma casa, querer esposa, criar gado, aprender algo de apreciável em diversas artes boas, querer o que quer de bom pertencente a esta vida. Tudo isso não subsiste sem o governo de Deus. Na verdade, dele e por ele são e principiaram a ser. Por obras más entendo coisas tais como querer render culto a um ídolo, querer cometer homicídio", etc.
artigo 19 - Da Causa do Pecado
Da causa do pecado ensinam que, conquanto Deus cria e conserva a natureza, contudo a causa do pecado é a vontade dos maus, a saber, do diabo e dos ímpios. A vontade, quando não auxiliada por Deus, desvia-se de Deus, conforme diz Cristo, em João 8: "Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio".
artigo 20 - Da Fé e das Boas obras
Os nossos são acusados falsamente de proibirem as boas obras. Pois os seus escritos publicados sobre os Dez Mandamentos, e outros de conteúdo semelhante, atestam que têm ensinado, proveitosamente, sobre todos os gêneros e deveres da vida, indicando que formas de vida e obras, em qualquer vocação, agradam a Deus. Pouco ensinavam, antigamente, os pregadores a respeito dessas coisas. Insistiam apenas em obras pueris e desnecessárias, tais como guardar certos dias feriados, determinados jejuns, fraternidades, peregrinações, culto de santos, rosários, monasticismo e coisas semelhantes. Os nossos adversários, admoestados a respeito, já abandonam essas coisas, nem pregam sobre essas coisas inúteis da forma em que o faziam anteriormente. Até começam a mencionar a fé, sobre a qual outrora havia estranho silêncio. Ensinam que somos justificados não por obras somente, porém unem fé e obras, e dizem que somos justificados pela fé e pelas obras. Essa doutrina é mais tolerável do que a anterior, e pode trazer mais consolação que sua doutrina antiga.
Como, pois, a doutrina da fé, que deve ser a principal na igreja, por tempo tão longo jazeu ignorada - sobre a justiça da fé, conforme todos devem reconhecer, houve o mais profundo silêncio nos sermões, havendo-se tratado na igreja apenas da doutrina das obras-, os nossos instruíram as igrejas da seguinte maneira sobre a fé:
Em primeiro lugar, que as nossas obras não podem reconciliar a Deus ou merecer a remissão dos pecados e a graça. Conseguimos isso, ao contrário, somente pela fé, quando cremos que somos recebidos na graça por causa de Cristo, o qual, ele só, foi posto como mediador e propiciação. Por ele o Pai é reconciliado. Aquele, pois, que confia merecer graça por obras, despreza o mérito e a graça de Cristo, e procura o caminho a Deus sem Cristo, através da força humanas, quando Cristo disse a respeito de si: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida."
Essa doutrina da fé é tratada em toda a parte em Paulo. Assim, em Efésios 2: "Pela graça fostes salvos, mediante a fé, e isso não vem das obras", etc.
E para não acontecer que alguém sofisme dizendo que inventamos nova interpretação de Paulo, note-se que toda essa questão tem testemunhos dos Pais. Agostinho, em muitos volumes, defende a graça e a justiça da fé contra os méritos das obras. E de modo semelhante ensina Ambrósio no De vocatione gentium e em outros lugares. No De vocatione gentium diz assim: "Sem valor tornar-se-ia a redenção pelo sangue de Cristo, nem ficaria abaixo da misericórdia de Deus a primazia das obras dos homens, se a justificação, que se dá pela graça, fosse devida a méritos precedentes, de modo que não seria presente do doador, porém salário daquele que trabalha".
Ainda que essa doutrina seja desprezada pelos inexperientes, todavia, consciências piedosas e pávidas experimentam que ela traz muitíssimo consolo, porque as consciências não podem ser tranqüilizadas por qualquer obra, mas tão-somente pela fé, quando estão certas de que por causa de Cristo têm um Deus reconciliado, conforme ensina Paulo, em Romanos 5 (v. 1): "Justificados mediante a fé, temos paz com Deus." Toda essa doutrina deve ser referida àquele conflito da consciência aterrorizada. E sem essa luta nem se pode entendê-la. Razão por que são maus juízes nessa matéria homens inexperimentados e profanos, os quais sonham que a justiça cristã outra coisa não é senão justiça civil ou filosófica.
Anteriormente vexavam-se as consciências com a doutrina das obras. Não ouviam o consolo do evangelho. A alguns a consciência impediu ao deserto, a mosteiros, esperando que aí haveriam de merecer a graça pela vida monástica. Outros inventavam outras obras para merecer a graça e satisfazer pelos pecados. Por isso foi muito necessário anunciar e renovar essa doutrina da fé em Cristo, a fim de que às consciências assombradas não faltasse o consolo, mas soubessem que pela fé em Cristo são apreendidas a graça e a remissão dos pecados.
Os homens também são advertidos de que aqui a palavra "fé’ não significa apenas conhecimento histórico, tal como existe nos ímpios e no diabo. Significa, porém, fé que não crê unicamente na história, mas também no efeito do que aconteceu, a saber, neste artigo: a remissão dos pecados, isto é, que por Cristo temos graça, justiça e remissão dos pecados.
Agora, quem sabe que por Cristo tem um Pai propício, este verdadeiramente conhece a Deus, sabe que Deus tem cuidado dele, o invoca, em suma, não está sem Deus, como os gentios. Pois os demônios e os ímpios não podem crer nesse artigo da remissão dos pecados. Por isso odeiam a Deus como a inimigo, não o invocam, nada de bom dele esperam. Também Agostinho adverte o leitor dessa maneira quanto à palavra "fé", e ensina que nas Escrituras não se entende o termo "fé", no sentido de "conhecimento", tal como existe nos ímpios, mas no sentido de "confiança" que consola e erige as mentes aterrorizadas.
Ensinam os nossos, além disso, que é necessário praticar boas obras, não para confiarmos que através disso merecemos graça, mas porque é a vontade de Deus. Somente pela fé são apreendidas a remissão dos pecados e a graça. E visto receber-se pela fé o Espírito Santo, imediatamente se renovam os corações e recebem novos afetos, por forma que podem produzir boas obras. Pois é assim que diz Ambrósio: "A fé é a mãe da vontade boa e da ação justa." Pois sem o Espírito Santo as forças humanas estão cheias de afetos ímpios, e são muitos fracas para efetuar obras boas aos olhos de Deus. Além disso, estão no poder do diabo, que impele os homens a multiformes pecados, a opiniões ímpias, a manifestos crimes. É o que se pode ver nos filósofos, que, embora hajam tentado viver vida honesta, contudo não lograram fazê-lo, porém se contaminaram com muitos crimes manifestos. Tal é a fragilidade do homem quando está sem fé e sem o Espírito Santo e se governa apenas com forças humanas.
Facilmente se vê daí que essa doutrina não deve ser acusada de proibir boas obras, senão que muito antes se deve louvá-la, porque mostra como podemos fazer boas obras. Pois sem a fé a natureza humana de modo nenhum pode fazer as obras do primeiro e segundo mandamentos. Sem a fé não invoca a Deus, nada espera de Deus, não carrega a cruz, mas busca auxílio humano e nele confia. Assim sendo, quando falta a fé e a confiança em Deus, todas as cobiças e conselhos humanos reinam no coração. Razão por que também Cristo disse: "Sem mim nada podeis fazer" João 15 (v. 5). E a igreja canta: Sem o teu poder Nada há no homem, Nada há de puro.
artigo 21 - Do culto aos Santos
Do culto aos santos ensinam que se pode lembrar a memória dos santos, a fim de lhes imitarmos a fé e as obras de acordo com a vocação, assim como o Imperador pode imitar o exemplo de Davi em fazer guerra, para impedir que os turcos invadam a pátria. Pois um e outro são reis. A Escritura, porém, não ensina que invoquemos os santos ou peçamos auxílio deles, porque nos propõe um só, Cristo, como mediador, propiciador, sumo sacerdote e intercessor. É a ele que se deve invocar, e ele prometeu que haveria de ouvir as nossas preces. E esse culto aprova-o muitíssimo, a saber, que seja invocado em todas as aflições. 1João 2 (v. 1): "Se alguém pecar, temos Advogado junto a Deus," etc.
Esta é, mais ou menos, a suma da doutrina entre nós. Pode-se ver que nela nada existe que divirja das Escrituras, ou da igreja católica, ou da Igreja Romana, até onde nos é conhecida dos escritores. Assim sendo, julgam duramente os que requerem sejam os nossos tidos por hereges. A dissensão toda diz respeito a alguns poucos abusos, que se infiltraram nas igrejas sem autoridade certa. E mesmo nessas coisas, suposto haja alguma discrepância, convinha, todavia, tivessem os bispos clemência bastante para tolerar os nossos em virtude da confissão que agora apresentamos. Porque nem mesmo os cânones são tão duros, a ponto de exigirem que os ritos sejam os mesmos em toda a parte. E jamais foram similares os ritos de todas as igrejas, ainda que entre nós os ritos antigos em grande parte são diligentemente observados. Pois é falso e calúnia isso de que todas as cerimônias, todas as instituições antigas sejam abolidas em nossas igrejas. Mas houve queixa pública de que certos abusos ineriam aos ritos populares. Esses, porque não podiam ser aprovados de boa consciência, foram corrigidos em certa medida.
artigo 22 - Artigos Em Que Se Recenseiam Os Abusos Mudados
Visto as igrejas entre nós não dissentirem da igreja católica em nenhum artigo de fé, abandonando apenas uns poucos abusos que são novos e foram aceitos contra a intenção dos cânones, por defeito dos tempos, rogamos que a Majestade Imperial ouça com clemência tanto o que foi mudado, como quais foram as razões, a fim de que não se coaja o povo a observar aqueles abusos contra a consciência. E não dê a Majestade Imperial crédito àqueles que, para inflamar o ódio dos homens contra os nossos, disseminam espantosas calúnias entre o povo. Irritando, dessa maneira, no início, o ânimo de homem de bem, deram ocasião a essa controvérsia, e agora, com a mesma arte, procuram aumentar a discórdia. Ora, a Majestade Imperial sem dúvida há de certificar-se de que a forma da doutrina e das cerimônias entre nós é mais tolerável do que a que homens iníquos e malévolos descrevem. E não se pode coligir a verdade a partir dos rumores vulgares ou das maledicências de inimigos. Fácil é, porém, julgar que nada contribui mais para a conservação da dignidade das cerimônias e o crescimento da reverência e da piedade no povo do que a correta observância das cerimônias nas igrejas.
artigo 22 - Das Duas Espécies
Na ceia do Senhor dão-se aos leigos as duas espécies do sacramento, porque este uso tem mandamento do Senhor. Mt 26(v. 27): "Bebei dele todos". Aqui Cristo manifestamente preceituou, a respeito do cálice, que todos bebam.
E para evitar que alguém pudesse cavilar dizendo que isto se refere apenas aos sacerdotes, Paulo, em Coríntios (1Co11, 20ss), cita um exemplo do qual se torna evidente que a igreja toda fez uso de ambas as espécies. E por longo tempo continuou esse uso na igreja, não se sabendo quando ou por quem foi primeiramente mudado, ainda que o cardeal Cusano indica quando foi aprovado. Cipriano (+258) testifica, em vários lugares, que o sangue foi dado ao povo. Testifica a mesma coisa Jerônimo (340/50-420), o qual diz: "Os sacerdotes administram a eucaristia e distribuem o sangue de Cristo ao povo". Na verdade, o papa Gelásio (492-496) ordena que não se divida o sacramento Dist.2 de consecratione, capítulo Comperimus. Apenas um costume que não é lá muito antigo procede de maneira diferente. É certo, entretanto, que um costume introduzido contrariamente aos preceitos de Deus não deve ser aprovado, conforme testificam os cânones, Dist 8, c. Veritate e seguintes. Mas esse costume foi recebido não só contra a Escritura, senão também contra os cânones antigos e o exemplo da igreja. Razão por que ninguém que haja preferido receber o sacramento sob ambas as espécies devera ter sido coagido a fazê-lo de outra maneira, com ofensa à consciência. E visto a divisão do sacramento não acordar com a instituição de Cristo, é costume entre nós omitir a procissão que até agora tem estado em uso.
artigo 23 - Do Matrimônio dos Sacerdotes
Houve queixa pública sobre o mau exemplo de sacerdotes que não eram continentes. Informa-se por isso também o papa Pio teria dito que houvera algumas razões por que os sacerdotes foram privados do matrimônio, mas que havia razões de muito mais peso por que se deveria restituir-lho. É assim que escreve Platina. Como, pois, os sacerdotes entre nós queriam evitar aqueles escândalos públicos, casaram e ensinaram que lhes era lícito contrair matrimônio. Em primeiro lugar, porque Paulo diz: "Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa." (1co 7,2) Também: "É melhor casar do que viver abrasado." (1Co 7,9) Em segundo lugar, Cristo diz: "Nem todos são aptos para receber este conceito." (Mt 19,11) Com isso ensina que nem todos os homens são idôneos para o celibato, porque Deus criou o homem para a procriação Gn 1 (v.17). Nem está no poder do homem modificar a criação sem singular dom e obra de Deus. Por isso, aqueles que não são idôneos para o celibato, devem contrair matrimônio. Pois nenhuma lei humana, nenhum voto podem anular um mandamento de Deus e uma ordenação de Deus. Por essas razões os sacerdotes ensinam que lhes é lícito casar.
Consta que também na igreja os sacerdotes eram homens casados. Pois também Paulo diz que se deve eleger para bispo alguém que esteja casado. E na Alemanha os sacerdotes coagidos pela força ao celibato pela primeira vez há mais de quatrocentos anos. Tanto, porém, resistiram, que o arcebispo de Mogúncia, quando anunciou que publicaria o edito do Romano Pontífice sobre essa questão, quase foi morto num tumulto pelos sacerdotes enfurecidos. E a coisa foi executada de maneira tão rude, que não apenas foram proibidos casamentos futuros, senão ainda dissolvidos, contra todo direito divino e humano, contra os próprios cânones, feitos não só pelos pontífices, mas pelos mais celebrados concílios, casamentos já existentes.
E, visto que nesse mundo senescente a natureza humana, a pouco e pouco, se torna mais frágil, importa se providencie para evitar que mais vícios penetrem furtivamente na Alemanha.
Além disso, Deus instituiu o matrimônio para que fosse remédio da fraqueza humana. Os próprios cânones dizem que, de vez em quando, o rigor antigo deve ser relaxado em tempos ulteriores, por causa da fragilidade dos homens. É de se desejar que tal se faça também nessa questão. Parece também que as igrejas algum dia estarão sem pastores se o casamento ficar proibido por mais tempo.
Visto, pois, existir o mandamento de Deus, visto ser conhecido o costume da igreja, visto um celibato impuro produzir muitos escândalos, adultérios e outros crimes dignos de castigo da parte de bons magistrados, é estranhável o fato de em coisa nenhuma se exercer mais crueldade do que contra o matrimônio de sacerdotes. Deus ordenou que se honrasse o matrimônio; as leis de todos os estados bem constituídos, mesmo entre os gentios, o adornaram com as mais elevadas honras. Mas agora homens são torturados com penas capitais, até mesmo sacerdotes, contrariamente à intenção dos cânones, por nenhum outro motivo senão o casamento. Doutrina de demônios chama Paulo a que proíbe o casamento 1Tm 4 (v. 1.3). Facilmente se pode entender isso agora, quando a proibição do casamento é mantida com tais penalidades.
Todavia, assim como nenhuma lei humana pode anular um mandamento de Deus, da mesma forma também um voto não pode anular o preceito divino. Assim também Cipriano aconselha se casem as mulheres que não guardam a castidade prometida. Suas palavras, no primeiro livro de suas cartas, epístola 11, são as seguintes: "Se, porém, não querem ou não podem perseverar, é melhor que casem do que caírem no fogo por sua volúpia; certamente não devem causar nenhum escândalo a seus irmãos ou irmãs."
E os cânones usam de certa eqüidade para com os que fizeram voto antes da idade justa, conforme até agora geralmente se costumou fazer.
artigo 24 - Da Missa
Nossas igrejas são acusadas falsamente de abolirem a missa. Pois a missa é mantida entre nós e celebrada com a máxima reverência. Também são conservadas quase todas as costumeiras cerimônias. Apenas são intercalados, aqui e acolá, entre os hinos latinos, hinos alemães, adicionados para ensinar o povo. Pois cerimônias são necessárias principalmente para ensinar os imperitos. E Paulo ordenou que na igreja se faça uso da língua compreendida pelo povo. Acostumou-se o povo a receber o sacramento em conjunto, sempre que haja pessoas preparadas. Também isso aumenta a reverência e a devoção das cerimônias públicas. Pois ninguém é admitido a menos que antes seja examinado e ouvido. Advertem-se também as pessoas sobre a dignidade e o uso do sacramento, e o grande consolo que leva a consciências assombradas, a fim de aprenderem a crer em Deus e de Deus esperarem e lhe pedirem tudo o que é bom. Esse culto é agradável a Deus, tal uso do sacramento alimenta o amor a Deus. Não parece, por conseguinte, que a missa é celebrada entre os adversários com mais devoção que entre nós.
Consta, entretanto, que durante muito tempo houve, da parte de todos os homens de bem, queixa públicas e muitíssimo séria também a este respeito: que as missas eram torpemente profanadas, postas a serviço da obtenção de dinheiro. E não é segredo a extensão que esse abuso assumiu em todos os templos, por que espécie de pessoas missas são celebradas apenas por causa do pagamento ou doações, quantos celebram contrariamente à proibição dos cânones. Mas Paulo ameaça gravemente aos que tratam a missa de forma indigna ao dizer: "Aquele que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor." (1Co11,27). Quando, em vista disso, os nossos sacerdotes foram admoestados a respeito desse pecado, terminaram entre nós as missas privadas, já que não se celebravam quase nenhuma missas particulares que não fosse rezadas por causa de ganho.
E os bispos não desconheciam essas abusos. Se os tivessem corrigido em tempo, haveria menos dissensão agora. Anteriormente permitiram, com sua dissimulação, que muitos vícios se infiltrassem na igreja, quando é tarde, começam a lamuriar obre as calamidades da igreja. Acontece, porém que o presente tumulto não se originou em outra coisa senão naqueles abusos, os quais eram tão manifestos, que não se podia tolerá-los por mais tempo. Surgiram grandes dissensões sobre a missa, sobre o sacramento. Talvez o mundo deva sofrer por profanação tão longa da missa, profanação que toleraram na igreja, por tantos séculos, aqueles que a poderiam e deveriam ter corrigido. Pois no Decálogo está escrito: "Quem tomar o nome de Deus em vão, não ficará impune". (Ex 20,7). Ora, desde o princípio do mundo nenhuma coisa divina jamais parece ter sido mal-usada com fins de ganho de tal maneira como a missa.
Acrescentou-se uma opinião que multiplicou as missas particulares ao infinito, a saber, que Cristo, com sua paixão, fizera satisfação pelo pecado original e instituíra a missa, na qual se faria oblação pelos pecados cotidianos, os mortais e os veniais. Daí surgiu a opinião pública de que a missa é obra que apaga os pecados dos vivos e dos mortos em virtude da obra realizada. Assim se começou a discutir sobre se uma missa, rezada por muitos, valia tanto quanto a missa particular rezada por indivíduos. Esse debate gerou aquela quantidade infinita de missas.
Com respeito a essas opiniões os nossos advertiram que elas dissentem das Sagradas Escrituras e lesam a glória da paixão de Cristo. Pois a paixão de Cristo foi oblação e satisfação não só pela culpa original, mas ainda pelos demais pecados, conforme está escrito na Epístola aos Hebreus: "Temos sido santificados mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas". (Hb 10,10) Da mesma forma: "Com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados." (Hb 10,14)
Ensina também a Escritura que somos justificados diante de Deus pela fé em Cristo. Agora, se a missa tira os pecados dos vivos e dos mortos pela obra realizada, então se alcança a justificação da obra da missa, não da fé, o que a Escritura não tolera.
O que acontece é que Cristo ordena o façamos em memória dele. Razão por que a missa foi instituída com a finalidade de a fé, naqueles que fazem uso do sacramento, recordar quais os benefícios recebidos mediante Cristo, e erguer e consolar a consciência apavorada. Pois recordar a Cristo é recordar os benefícios e sentir que verdadeiramente são oferecidos a nós. E não basta recordar a história, porque isso também o podem recordar os judeus e os ímpios. A missa, portanto, deve realizar-se a fim de nela ser administrado o sacramento àqueles que necessitam de consolo, como diz Ambrósio: "Visto que sempre peco, sempre devo tomar remédio."
Como, pois, a missa é tal comunhão do sacramento, conserva-se entre nós uma só missa comum para cada dia santo e também para outros dias. Se alguns querem receber o sacramento, administra-se o sacramento aos que o pedem. E esse costume não é novo na igreja. Pois os antigos, de antes de Gregório, não fazem menção de missa privada. Da missa comum falam muitas vezes. Diz Crisóstomo (354-407): "Diariamente o sacerdote está junto ao altar, e a alguns chama à comunhão, a outros recusa". E dos cânones antigos se vê que uma só pessoa celebrava a missa, e dela os demais presbíteros e diáconos recebiam o corpo do Senhor. Pois é assim que rezam as palavras do cânone niceno (325): "Os diáconos, segundo a ordem, recebam, do bispo ou do presbítero, a sagrada comunhão, depois dos presbíteros". E Paulo ordena, com respeito à comunhão, que uns esperem pelos outros, a fim de que a participação seja comum. (1 Co 11,21)
Visto, pois, que à luz da Escritura e dos Pais, a missa, entre nós, tem o exemplo da igreja, confiamos que não pode ser desaprovada, especialmente tendo em vista que são conservadas cerimônias públicas em sua maior parte semelhantes às usuais. Apenas é dessemelhante o número de missas. Quantos a ele, por causa dos mui grandes e manifestos abusos, certamente seria vantajosos moderá-lo. Pois antigamente, onde quer que fosse, não se rezava missa diariamente nem mesmo nas igrejas mais freqüentadas, conforme atesta a História Tripartida, no livro nono: "Por outro lado, contudo, em Alexandria é às quartas e sextas-feiras que as Escrituras são lidas e os doutores as interpretam e faz-se tudo sem o solene costume do sacrifício".
artigo 25 - Da Confissão
A confissão não está abolida em nossas igrejas. Pois não se costuma dar o corpo do Senhor a não ser àqueles que previamente foram examinados e absolvidos. E o povo é instruído diligentissimamente sobre a fé na absolvição, a respeito da qual antes de nossos tempos houve profundo silêncio. Ensina-se aos homens que tenham a absolvição em alto apreço, porque é a voz de Deus e é pronunciada por ordem de Deus. Louva-se o poder das chaves e lembra-se quão grande conforto leva às consciências aterrorizadas, e que Deus requer a fé para que creiamos nessa absolvição como sua voz que soa do céu, e que essa fé verdadeiramente alcança e recebe a remissão dos pecados. Em tempos anteriores, as satisfações foram postas em evidência imoderadamente. Menção nenhuma se fazia da fé, e do mérito de cristo, e da justiça da fé. Razão por que nessa questão nenhuma culpa se deve dar a nossas igrejas. Pois até os nossos adversários reconhecem que a doutrina do arrependimento é tratada e apresentadas pelos nossos de maneiras diligentíssima.
Mas da confissão ensinam que não é necessária a enumeração dos pecados e que as consciências não devem ser oneradas com o cuidado de enumerar todos os pecados, pois é impossível mencionar todos os pecados, como atesta o Salmo: "Quem há que possa discernir as próprias faltas?" (Sl 19,12) E Jeremias: "Corrupto é o coração do homem e inescrutável". (Jr 17,9) Se, porém. Nenhum pecado fosse perdoado a não ser o que se conta, as consciências jamais poderiam aquietar-se, porque muitos pecados a gente não vê, nem se podem recordá-los. Também os escritores antigos atestam que aquela enumeração não é necessária. No Decreto cita-se Crisóstomo, que diz o seguinte: "Não te digo que te exponhas em públicos ou que te acuses junto a outros, porém quero que obedeças ao profeta, que diz: ‘Revela o teu caminho diante de Deus.’ Confessa, portanto, os teus pecados, em oração, diante de Deus, o verdadeiro juiz. Dize as tuas faltas não com a língua, porém com a memória de tua consciência." E a glosa sobre a penitência, distinção quinta, no capítulo Considere, admite que a confissão é de direito humano. Todavia a confissão é mantida entre nós, por causa do grandíssimo benefício da absolvição, como também por causa de outros proveitos para as consciências.
artigo 26 - Da Distinção de Comidas
Foi persuasão comum, não só do povo, mas também dos que ensinavam nas igrejas, que distinções entre comidas e semelhantes tradições humanas são obras úteis para merecer graça e satisfazer por pecados. E que o mundo pensou assim evidencia-se do fato de que diariamente se instituíam novas cerimônias, novas ordens, novos dias santos, novos jejuns, e do fato de que os mestres nos templos exigiam essas obras como culto necessário para merecer graça e muito aterrorizavam as consciências quando omitiam algo. Dessa persuasão quanto às tradições provieram muitos males da igreja.
Em primeiro lugar, obscureceu-se com isso a doutrina sobre a graça e a justiça da fé, que é a parte principal do evangelho, e que deve existir e ter eminência na igreja acima de tudo, a fim de se reconhecer bem o mérito de Cristo, e para que a fé, que crê serem os pecados perdoados por causa de Cristo, seja posta muito acima e sobre todos os outros cultos. Essa também é a razão por que Paulo se aplica ao máximo nesse artigo, remove a lei e as tradições humanas, a fim de mostrar que a justiça cristã é algo diverso de obras dessa natureza, a saber, é a fé que crê sermos recebidos na graça por causa de Cristo. Mas essa doutrina de Paulo foi quase totalmente abafada pelas tradições, que geraram a opinião de que se deve merecer a graça e a justiça por distinções entre comidas e cultos semelhantes. No arrependimento, menção nenhuma se fazia da fé. Apenas se propunham essas obras de satisfação. Julgava-se que nisso consistia todo o arrependimento.
Em segundo lugar, essas tradições obscureceram os mandamentos de Deus, porque eram postas muito acima dos preceitos divinos. Julgava-se que o cristianismo todo consistia na observação de certos dias santos, ritos, jejuns, vestimenta. Essas observâncias estavam na posse do honradíssimo título de serem a vida espiritual e a vida perfeita. Enquanto isso, os mandamentos de Deus segundo a vocação nenhum louvor recebiam: que o pai educava os filhos, que a mãe dava à luz, que o príncipe regia o país. Essas obras eram consideradas mundanas e imperfeitas, e muitos inferiores àquelas esplêndidas. E esse erro torturou muito a consciências piedosas. Afligiam-se porque tinha de ficar em gênero imperfeito de vida, no casamento, no governo ou outras funções civis. Admiravam os monges e criaturas que tais, e julgavam, erroneamente, que as observâncias daqueles eram mais agradáveis a Deus.
Em terceiro lugar, as tradições trouxeram grande perigos para as consciências, pois era impossível observar todas as tradições, e mesmo assim os homens julgavam que essas observâncias eram cultos necessários. Escreve Gérson que muitos ficaram desesperados e que alguns até se suicidaram, porque entendiam que não poderiam cumprir as tradições. E, enquanto isso, ainda não tinham ouvido nenhum consolo da justiça da fé e da graça. Vemos que os sumistas e os teólogos coligem as tradições e procuram abrandamentos para aliviar as consciências. Todavia, não libertam suficientemente, senão que por vezes enredam as consciências mais ainda. E as escolas e sermões estiveram tão ocupados em coligir tradições, que não houve tempo para tomar a Escritura e inquirir sobre uma doutrina mais útil a da fé, da cruz, da esperança, da dignidade das coisas civis, da consolação de consciências em árduas tentações. Por isso Gérson e alguns outros teólogos se queixaram energicamente dizendo que eram impedidos por essas rixas em torno de tradições, de sorte que não podiam dedicar-se a um gênero melhor de doutrina. Também Agostinho proíbe onerar as consciências com tais observâncias, e sabiamente adverte a Januário para que esteja ciente de que devem ser observadas como coisas indiferentes. É assim que se expressa.
Por essa razão não deve parecer que os nossos tomaram em mãos esse assunto irrefletidamente ou por ódio aos bispos, como alguns erroneamente suspeitam. Houve grande necessidade de advertir as igrejas quanto àqueles erros, que tinham nascido de tradições mal compreendidas. Pois o evangelho compele a instar, na igreja, pela doutrina da graça e da justiça da fé. Essa doutrina, todavia, não pode ser entendida, se os homens pensam que merecem graça por observâncias de sua própria escolha.
Portanto, ensinaram assim: que pela observância de tradições humanas não podemos merecer graça ou satisfazer por pecados. Razão por que não se deve pensar que tais observâncias sejam culto necessário. Acrescentam testemunhos da Escritura. Cristo, em Mt 15, desculpa os apóstolos, que não haviam observado a tradição costumeira, a qual, contudo, era considerada coisa indiferente e estava relacionada com as lavagens da lei. Diz ele: "Em vão me adoram com preceitos de homens." Não exige, por conseguinte, culto inútil. E pouco depois acrescenta: "Não é o que entra pela boca o que contamina o homem:" (Mt 15,11) Da mesma forma em Rm 14 (v. 17): "Porque o reino de Deus não é comida nem bebida." Cl 2 (v.16): "Ninguém vos julgue por causa de comida, bebida, sábado ou dia de festa." Em atos 15 (v. a) diz Pedro: "Por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nós pudemos suportar, nem nossos pais? Mas cremos que somos salvos pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, como também eles." Aqui Pedro proíbe onerar as consciências com mais ritos ainda, quer sejam de Moisés, quer de outros. E 1 M 4 chama a proibição de alimentos "ensinos de demônios", pois conflita com o evangelho instituir ou fazer tais obras a fim de por elas merecer a graça, ou como se não pudesse existir justiça cristã sem tal culto.
Aqui os adversários fazem a objeção de que os nossos proíbem a disciplina e a mortificação da carne, a exemplo de Joviniano. Outra, porém, é a coisa que se encontra nos escritos dos nossos. Pois sempre ensinaram, com respeito à cruz, ser necessário que os cristãos suportem aflições. Ser exercitado em multifárias aflições e crucificado com Cristo, eis a mortificação verdadeira, séria e não simulada.
Ensinam, além disso, que todo cristão deve exercitar e dominar-se mediante disciplina ou exercícios corporais e labores de modo tal, que a saciedade ou a indolência não o estimulem ao pecado, não a fim de merecer remissão de pecados ou satisfazer por pecados mediante aqueles exercícios. E é preciso insistir sempre nessa disciplina corporal, não só em poucos e determinados dias, mas conforme preceitua Cristo: "Acautelai-vos, para que os vossos corações não sejam sobrecarregados com orgia." (Lc 21,34) Também: "Esta casta de demônio não se expede senão por meio de jejum e oração." (Mt 17,21) E Paulo diz: "Esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão." (1 Co 9,27) Aí mostra claramente que castiga seu corpo não no intuito de por essa disciplina merecer remissão de pecados, mas a fim de manter o corpo em sujeição e idôneo para as coisas espirituais e o cumprimento dos deveres de acordo com sua vocação. Por isso não se condenam os jejuns em si, mas tradições que prescrevem certos dias e determinados alimentos, com perigo para a consciência, como se tais obras fossem culto necessário.
Conserva-se, todavia, entre nós, a maior parte das tradições, como as perícopes na missa, dias santos, etc., que fazem com que haja ordem na igreja. Ao mesmo tempo, entretanto, os homens são advertidos de que tal culto não justifica diante de Deus, e que não se deve fazer pecado de tais coisas, se foram omitidas sem escândalo. Essa liberdade em matéria de ritos humanos não a desconheceram os Pais. Pois no Oriente se celebrava a Páscoa em tempo diverso do de Roma, e quando os romanos, em razão dessa dessemelhança, acusaram o Oriente de cisma, foram advertidos por outros no sentido de que não era necessário fossem tais costumes iguais em toda a parte. E Irineu diz: A dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé". E o papa Gregório indica, na Distinctio 12, que tal dessemelhança não fere a unidade da igreja. E na História Tripartida, livro nono, coligem-se muitos exemplos de ritos dessemelhantes, acrescentando-se as palavras: "Não foi intenção dos apóstolos estabelecer leis a respeito de dias santos, mas pregar boa conduta e piedade".
artigo 27 - Dos Votos Monásticos
O que entre nós se ensina a respeito de votos monásticos entende-se melhor quando se recorda qual foi o estado dos mosteiros, quantas coisas, contrárias aos cânones, aconteciam, diariamente, nos próprios mosteiros. No tempo de Agostinho eram colégios livres; depois, corrompida a disciplina, em toda a parte se adicionaram votos, a fim de que a disciplina fosse restaurada, como quem num planejado sistema carcerário.
Além dos votos, adicionaram-se, aos poucos, muitas outras observâncias. E essas cadeias foram postas em muitos, contrariamente aos cânones, antes da justa idade. Muitos entraram nesse gênero de vida por engano, pois, ainda que não lhes faltasse idade, todavia lhes minguou juízo quanto às suas forças. Os que assim se enredavam, eram coagidos a permanecer, ainda que alguns se poderiam ter libertado com a ajuda dos cânones. E isso aconteceu mais ainda em conventos femininos do que nos de monges, conquanto se devera ter tratado o sexo mais frágil com maior consideração. Esse rigor desagradou a muitos homens de bem antes de nossos tempos, quando viam que mocinhas e rapazinhos eram jogados em mosteiros por causa de sustento. Viam que infelicidade esse procedimento trazia, que escândalos gerou, que laços eram lançados Às consciências. Doía-lhes ver a autoridade dos cânones totalmente negligenciada e desprezada em coisa de tamanho perigo. A esses males se acrescentava uma persuasão tal sobre os votos, que, consta, em tempos anteriores desagradou também aos próprios monges, pelo menos aos que foram mais sábios.
Diziam que votos eram iguais ao batismo; ensinavam merecer-se com esse gênero de vida a remissão dos pecados e a justificação diante de Deus. Mais ainda: acrescentavam até que a vida monástica não só merecia a justiça diante de Deus, mas coisa ainda além disso, pois que nela se observavam não apenas os mandamentos, senão ainda os conselhos evangélicos. Dessa maneira persuadiam aos homens que a profissão monástica era muito melhor do que o batismo, que a vida monástica era mais meritória do que a vida dos magistrados, dos pastores e de outros, semelhantes, os quais, sem exercícios religiosos de sua própria inventiva, vivem para a sua vocação de acordo com os mandamento de Deus. Nada disso pode ser negado, pois está em seus livros.
Que aconteceu depois nos mosteiros? Antigamente eram escolas de letras sagradas e outras disciplinas úteis para a igreja, e delas se tomavam pastores e bispos. Agora a coisa é diferente. E não é preciso dizer o que é notório. Antigamente pessoas se juntavam nos mosteiros para aprender: agora imaginam que esse gênero de vida foi instituído a fim de se merecer graça e justiça. Pregam, na verdade, que é o estado da perfeição, e o põe muito acima de todos os outros gêneros de vida ordenados por Deus. Dissemos essas coisas sem fazer odiosas exagerações, a fim de que se possa entender melhor a doutrina dos nossos a respeito dessa questão.
Em primeiro lugar, concernente aos que casam, ensinam ser lícito contraírem matrimônio quantos não são idôneos para o celibato, porque votos não podem anular uma ordenação e mandamento de Deus. Ora, o seguinte é mandamento de Deus: "Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa". (1 Co7,2) E não é apenas mandamento; também a criação e ordenação obriga ao matrimônio os que não são excetuados por singular obra de Deus, segundo a palavra: "Não é bom que o homem esteja só." (Gn 2,18) Por isso não pecam os que obedecem a esse mandamento e ordenação de Deus.
Que se pode objetar a isso? Exagere alguém a obrigação do voto quanto queira; não poderá fazer, todavia, com que o voto ab-rogue o mandamento de Deus. Os cânones ensinam que em todo voto está excetuado o direito do superior; por isso, muito menos valem esses votos contra os mandamentos de Deus.
Se não houvesse nenhuma razão por que se pudesse modificar a obrigação de votos, deles também não teriam dispensado os romanos pontífices. Pois não é lícito ao homem rescindir obrigação que é simplesmente de direito divino. Mas os romanos pontífices prudentemente sentenciaram que se deve observar eqüidade nessa obrigação. Lê-se, por isso, que muitas vezes dispensaram de votos. Pois é conhecida a história do rei de Aragão (1134-1137), que foi chamado de volta de um mosteiro. E não faltam exemplos em nosso tempo.
Em segundo lugar, por que os adversários acentuam ao exagero a obrigação ou o efeito do voto, enquanto silenciam sobre a natureza do voto, que deve dizer respeito a coisa possível, deve ser voluntário, e assumido espontânea e refletidamente? Ora, de que modo a castidade perpétua está no poder do homem é coisa que não se ignora. E quantos são os que fizeram voto espontânea e deliberadamente? Mocinhas e rapazinhos, antes de terem a capacidade de julgar, são persuadidos a fazerem voto, e vez que outra até são coagidos. Razão por que não é justo discutir com tantã rigidez sobre a obrigação, visto concederem todos que é contra a natureza do voto fazer promessa não-espontânea e irrefletida.
Muitos cânones anulam votos feitos antes da idade de quinze anos, porque parece que antes dessa idade não há suficiente capacidade para formar juízo que possa decidir sobre a vida inteira. Outro cânone, fazendo concessão ainda maior à fragilidade humana, acrescenta alguns anos. Proíbe fazer voto antes de dezoito anos de idade. Seja qual for o cânone que decidimos seguir, a maior parte tem razão que justifica o abandono dos mosteiros, porque a maioria fez voto antes dessa idade.
Por último, ainda que se pudesse censurar a violação do voto, não é evidente, todavia, seguir-se sem mais que o casamento de tais pessoas deva ser dissolvido. Agostinho nega que se deva dissolvê-lo, 27., quaestio I, capítulo Nuptiarum. E sua autoridade é considerável, ainda que outros, posteriormente, julgaram de maneira diversa.
Conquanto pareça, por conseguinte, que o mandamento de Deus a respeito do matrimônio a muitos liberta dos votos, os nossos, todavia, apresentam ainda outra razão para mostrar que são nulos. Porque todo culto a Deus instituído por homens, sem mandamento de Deus, e escolhido para merecer a justificação e a graça, é ímpio, como diz Cristo: "Em vão me adoram com preceitos de homens." (Mt 15,9) E Paulo em toda a parte ensina que não se deve buscar a justiça por intermédio de observâncias e cultos nossos inventados por homens, mas que ela vem pela fé aos que crêem serem recebidos por Deus na graça por causa de Cristo.
Consta, porém, haverem os monges ensinado que exercícios religiosos de própria inventiva satisfazem pelos pecados e merecem a graça e a justificação. Que outra coisa é esta senão diminuir a glória de Cristo e obscurecer e negar a justiça da fé? Segue-se, portanto, que esses votos costumeiros foram cultos ímpios, razão por que são mulos. Pois um voto ímpio e feito contra os mandamentos de Deus não tem validade. Como diz o cânone, jamais deve um voto ser vínculo de iniqüidade.
Diz Paulo: "De cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes." (Gl. 5,4) Portanto, os que querem ser justificados por votos, perdem a Cristo e decaem da graça. Pois também aqueles que atribuem a justificação aos votos, atribuem às próprias obras aquilo que, propriamente, pertence à glória de Cristo. E não se pode negar haverem os monges ensinado que eram justificados e mereciam a remissão dos pecados por seus votos e observâncias. Na verdade, inventaram coisas ainda mais absurdas: gloriaram-se de que partilhavam suas obras a outros. Se alguém quisesse aqui exagerar odiosamente, quanta coisa poderia coligir de que os próprios monges já se envergonham! Além disso, persuadiram os homens de que exercícios religiosos de própria inventiva eram o estado da perfeição cristã. Não é isso atribuir a justificação às obras? Não é leve escândalo na igreja propor ao povo determinado culto inventado, sem mandamento, por homens, e ensinar que tal culto justifica os homens. Porque a justiça da fé, cujo ensino é obrigação máxima na igreja, é obscurecida quando os olhos dos homens são ofuscados com aqueles espantosos cultos de anjos, aquela simulação de pobreza humilde e celibato.
Além disso, os mandamentos de Deus e o verdadeiro culto a Deus não obscurecidos quando os homens ouvem que somente os monges estão no estado da perfeição. Pois perfeição cristã é temer seriamente a Deus e ao mesmo tempo ter grande fé e confiar que por causa de Cristo temos um Deus reconciliado, pedir, e esperar com certeza, auxílio de Deus em todos os deveres de nossa vocação, e, entrementes, praticar, com diligência, boas obras na vida externa e servir a vocação. É nessas coisas que consiste a verdadeira perfeição e o verdadeiro culto a Deus, não em celibato, ou mendicância, ou vestimenta miserável. Assim, o povo concebe muitas opiniões perniciosas a partir daquelas falsas preconizações da vida monástica. Ouve louvores imoderados do celibato; por isso vive de má consciência no matrimônio. Ouve que apenas os mendicantes são perfeitos; por isso é de má consciência que mantém suas posses, é com ofensa à consciência que negocia. Ouve que não vingar-se é conselho evangélico; por isso alguns não se receiam de fazer vingança na vida particular, pois ouvem que a vindita é proibida por um conselho, não por um mandamento. De outro lado, outros erram mais ainda quando julgam que toda magistratura, todo ofício civil é indigno do cristão e conflita com o conselho evangélico.
Encontram-se, em leituras, exemplos de homens que, abandonando o matrimônio e a administração da coisa pública, se retiraram a mosteiros. A isso chamavam fugir do mundo e buscar um gênero santo da vida. Não viam que a Deus se deve servir de acordo com os mandamentos que ele mesmo deu, não segundo preceitos inventados pelos homens. Gênero de vida bom e perfeito é o que tem mandamento de Deus. A respeito dessas coisas é necessário admoestar os homens.
E antes dos tempos presentes Gérson ( + 1429) criticou o erro dos monges quanto à perfeição e testifica que em seu tempo era novidade isso de dizer-se que a vida monástica é estado de perfeição.
Tão grande número de opiniões ímpias se prende aos votos: que justificam, que são perfeição cristã, que os monges observam os conselhos e os preceitos, que eles têm obras além das que se esperam do cristão normal. Tudo isso, já que é falso e inconsistente, torna os votos nulos.
artigo 28 - Do Poder Eclesiástico
Sobre o poder dos bispos houve, no passado, grandes discussões em que alguns impropriamente confundiram o poder eclesiástico e o poder da espada. Dessa confusão nasceram guerras muito grandes e tumultos, enquanto os pontífices, apoiados no poder das chaves, não só instituíram novos cultos e oneraram as consciências com a reserva de casos e violentas excomunhões, mas também se lançaram à empresa de transferir reinos do mundo e tirar o poder dos imperadores. Homens piedosos e eruditos há muito repreenderam esses erros na igreja. Por isso os nossos, para instruir as consciências, se viram compelidos a mostrar a diferença entre o poder eclesiástico e o poder político, e ensinaram que, por causa do mandamento de Deus, ambos devem ser escrupulosamente venerados e honrados como os maiores benefícios de Deus na terra.
Os nossos pensam assim: o poder das chaves, ou poder dos bispos, é, segundo o evangelho, o poder ou ordem de Deus de pregar o evangelho, remitir reter pecados e administrar os sacramentos. Pois Cristo envia os apóstolos com essa ordem: "Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. Recebei o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos." (Jó 20,21-23). E Mc 16 (v. 16): "Ide, pregai o evangelho a toda criatura", etc.
Esse poder é exercido apenas através do ensino ou pregação do evangelho e la administração dos sacramentos a muitos ou a indivíduos, de acordo com a vocação. Pois o que se concede aí não são coisas corporais, porém eternas, a justiça eterna, o Espírito Santo, a vida eterna. Isto só se pode alcançar pelo ministério da palavra e dos sacramentos, como diz Paulo: "O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê." (Rm 1,16) E Sl 119 (v.25): "A tua palavra me vivifica". Visto, pois, o poder eclesiástico conceder coisas eternas e ser exercido apenas pelo ministério da palavra, embaraça a administração política tão pouco quanto a estorva a arte de cantar. Pois a administração política trata de coisas diferentes das do evangelho. O magistrado defende não as mentes, porém os corpos e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens com a espada e penas temporais. O evangelho defende as mentes contra opiniões ímpias, contra o diabo e a morte eterna.
Não se devem confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil. O poder eclesiástico tem sua própria incumbência: ensinar o evangelho e administrar os sacramentos. Não deve invadir ofício alheio, transferir reinos do mundo, ab-rogar as leis dos magistrados, abolir a obediência legítima, impedir julgamentos a respeito de quaisquer ordenações ou contratos civis, prescrever leis aos magistrados sobre a forma de constituir a coisa pública. Conforme diz Cristo: "O meu reino não é deste mundo". (Jó 18,36) Também: "Quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?" (Lc 12,14) E Paulo diz Fp 3 (v.20): " A nossa pátria está nos céus." 2 Co 10 (v.4): "As armas da nossa milícia não são carnais, e sim, o poder de Deus para destruir cogitações, etc."
Dessa maneira os nossos fazem distinção entre os ofícios de ambos os poderes, e ordenam que ambos sejam honrados e reconhecidos como dom e benefício de Deus.
Se bispos têm algum poder civil, não o têm como bispos, através do mandato do evangelho, mas por direito humano, dado por reis e imperadores para a administração de seus bens civis. Essa função, entretanto, é diversa da do ministério do evangelho.
Quando, pois, se indaga sobre a jurisdição dos bispos, deve distinguir-se entre a autoridade civil e a jurisdição eclesiástica. Assim, segundo o evangelho, ou, como se diz, de direito divino, compete aos bispos, como bispos, isto é, àqueles que estão incumbidos do ministério da palavra e dos sacramentos, essa jurisdição: perdoar pecados, rejeitar doutrina que dissente do evangelho e excluir da comunhão da igreja os ímpios cuja impiedade é conhecida. Todavia, sem força humana, mas com a palavra. Nisso as igrejas necessariamente e de direito divino devem prestar-lhes obediências, segundo a palavra: "Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim". (Lc 10,16)
Todavia, quando ensinam ou estabelecem algo contra o evangelho, então as igrejas têm mandamento de Deus que proíbe obedecer. Mt 7 (v.15): "Acautelai-vos dos falsos profetas." Gl 1 (v.8): "Se um anjo do céu pregar outro evangelho, seja anátema." 2 Co 13 (v.8): "Porque nada podemos contra a verdade, senão em favor da própria verdade". Também: "Dada nos é autoridade para edificação, não para destruição." (2 Co 13, 10). Assim também preceituam os cânones II, questio VII, nos capítulos Sacerdotes e Oves. E Agostinho diz, na epístola contra Petiliano: "Também com os bispos católicos não se deve concordar caso suceda que errem ou pensem algo que seja contrário às Escrituras canônicas de Deus."
Se têm algum outro poder ou jurisdição para conhecer de certas causas, por exemplo em questões de casamento ou dízimo, etc., têm-no por direito humano. Quando faltam os ordinários, os príncipes são obrigados, mesmo contra a sua vontade, a pronunciar direito aos súditos, para a manutenção da paz pública.
Discute-se, além disso, sobre se os bispos ou pastores têm o direito de instituir cerimônias na igreja e fazer leis sobre alimento, feriados, graus dos ministros ou ordens, etc. Os que atribuem esse direito aos bispos, alegam o testemunho: "Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos ensinará toda a verdade." (Jó 16, 12.13) Alegram também o exemplo dos apóstolos, que ordenaram abstenção do sangue e do sufocado (At 15,20.29). Alegam o sábado, que foi mudado para o domingo, contrariamente ao Decálogo, como parece. Nenhum exemplo é mais enfatizado que a mudança do sábado. Contendem que é grande a autoridade da igreja, pois que dispensou de um preceito do Decálogo.
Mas a respeito dessa questão os nossos ensinam assim: que os bispos não têm poder para estabelecer algo contra o evangelho, conforme se mostrou acima. É o que também declaram os cânones em toda a Distinção nona. Além disso, é contrário à Escritura criar tradições, a fim de pela observância delas satisfazermos pelos pecados ou merecermos ser justificados. Pois a glória do mérito de Cristo é lesada quando julgamos ser justificados mediante tais observâncias. Mas consta que por causa dessa persuasão na igreja as tradições cresceram quase ao infinito, enquanto era sufocada a doutrina da fé a da justiça da fé. Porque, uns após outros, mais feriados foram estabelecidos, mais jejuns prescritos, e novas cerimônias e novas ordens instituídas, porque os autores de tais coisas julgavam que mereciam a graça por essas obras. Assim aumentaram, anteriormente, os cânones penitenciais, e deles ainda vemos alguns vestígios nas satisfações.
Da mesma forma os autores das tradições agem contra o mandamento de Deus quando põem pecado em alimentos, dias e coisas semelhantes, e oneram a igreja com a escravidão da lei, como se, para merecer a justificação, fosse necessário que existisse entre os cristãos um culto semelhante ao levítico, de cuja ordenação Deus houvesse incumbido os apóstolos e os bispos. Pois é assim que escrevem alguns, e parece que os pontífices em parte foram enganados com o exemplo da lei mosaica. Daí provêm cargas como essas: que é pecado mortal fazer trabalho manual em dias santos, ainda quando não haja ofensa a outros; que certos alimentos poluem a consciência; que jejuns, não os naturais, mas os aflitivos, são obras que reconciliam a Deus; que é pecado mortal omitir as horas canônicas; que em caso reservado um pecado não pode ser perdoado a menos que haja autoridade do reservante, quando os próprios cânones falam aqui não da reserva da culpa, mas da reserva da pena eclesiástica.
De onde têm os bispos o direito de impor tais tradições às igrejas para envidar as consciências, quando Pedro proíbe impor jugo aos discípulos, e Paulo diz que o poder lhes foi dado para edificação, não para destruição? Por que multiplicam os pecados mediante tais tradições?
Existem, porém, claros testemunhos que proíbem fazer tradições para reconciliar a Deus ou como se fossem necessárias para a salvação. Diz Paulo, em Cl 2 (v.16): "Ninguém vos julgue por causa de comida, bebida, dia de desta, lua nova ou sábados." Também: "Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, fazeis ordenanças: não manuseies, não proves, não toques? Toda estas coisas, com o uso, se destroem e são preceitos e doutrinas dos homens e têm aparência de sabedoria". (Cl 2, 20-23) Em Tito 1(v. 14): "Não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verdade."
Em Mt 15 (v. 14) diz Cristo, a respeito daqueles que exigem tradições: "Deixai-os: são cegos e guias de cegos". E reprova tais cultos: "Toda planta que meu Pai celestial não plantou, será arrancada." (Mt 15,13)
Se os bispos têm o direito de onerar as consciências com tais tradições, então por que a Escritura proíbe tantas vezes estabelecer tradições? Por que lhes chama doutrinas de demônios? Foi em vão que o Espírito Santo preveniu contra isso?
Segue-se, portanto, que, visto as ordenações instituídas como necessárias, ou com a idéias de merecer a justificação, conflitarem como evangelho, não é lícito aos bispos instituir tais cultos ou exigí-los como necessários. Pois é necessário preservar nas igrejas a doutrina da liberdade cristã de que não é necessária a servidão da lei para a justificação, conforme está escrito em Gálatas: "Não vos submetais de novo a jugo de escravidão". (Gl 5,1) É necessário preservar o artigo principal do evangelho: que alcançamos a graça pela fé em Cristo, não por determinadas observâncias ou por cultos instituídos pelos homens.
Que se deve pensar, portanto, do domingo e de similares ritos das igrejas? A isso respondem os nossos ser lícito aos bispos ou pastores fazer ordenações para que as coisas sejam feitas com ordem na igreja, não a fim de por elas satisfazermos por pecados ou se obrigarem as consciências a que as tenham na conta de cultos necessários. Assim Paulo ordena que na congregação as mulheres velem a cabeça e que os intérpretes na igreja sejam ouvidos um após outro. (1 Co 11,5s)
É conveniente que as igrejas, por causa do amor e da tranqüilidade, obedeçam a tais ordenações e as conservem até onde um não ofenda o outro, fazendo-se, pelo contrário, tudo nas igrejas com ordem e sem tumulto. Contudo, de maneira tal, que não se onerem as consciências, de forma que pensem serem coisas necessárias para a salvação e julguem que pecam quando as violam sem escândalo. Assim como ninguém dirá pecar a mulher que, sem escândalo, se apresenta em público de cabeça descoberta.
Tal é a observância do domingo, da Páscoa, do Pentecostes e de feriados e ritos semelhantes. Pois é incorreto o pensamento dos que julgam que a observância do domingo em lugar do sábado foi instituída como necessária, pela autoridade da igreja. Foi a Escritura que ab-rogou o sábado, não a igreja. Porque depois de revelado o evangelho, podem omitir-se todas as cerimônias mosaicas. Contudo, visto que era necessário estabelecer um dia determinado, a fim de que o povo soubesse quando devia reunir-se, é manifesto que a igreja destinou o domingo para esse fim, e parece que a solução agradou tanto mais por esta razão adicional: terem os homens um exemplo de liberdade cristã e saberem que nem o sábado nem qualquer outro dia é observância necessária.
Há discussões inauditas sobre a mudança da lei, sobre cerimônias da nova lei, sobre a mudança do sábado. Tudo isso originou-se da falsa persuasão de que na igreja devia haver culto semelhante ao levítico, e de que Cristo comissionou os apóstolos e os bispos de inventarem novas cerimônias necessárias para a salvação. Esses erros se insinuaram na igreja, porque não se ensinou de maneira suficientemente clara a justiça da fé. Alguns sustentam que a observância do domingo na verdade não é de direito divino, mas como que de direito divino. Prescrevem, com respeito a dias santos, em que medida é lícito trabalhar. Que outra coisa são tais disputas senão laços para as consciências? Pois ainda que procuram mitigar as tradições, contudo jamais se pode alcançar a eqüidade enquanto permanece a opinião de que são necessárias. E essa opinião necessariamente permanece onde se ignora a justiça, da fé e a liberdade cristã.
Os apóstolos ordenaram abster-se do sangue, etc. Quem observa isso hoje em dia? E contudo não pecam os que deixam de observá-lo, porque os próprios apóstolos não quiseram onerar as consciências com tal escravidão, mas apenas o proibiram por algum tempo, a fim de evitar escândalo. Pois no decreto deve considerar-se a perpétua vontade do evangelho.
Dificilmente algum cânone é observado com exatidão, e diariamente muitos se tornam obsoletos, até entre os que defendem as tradições. Nem se pode prestar auxílio às consciências a menos que se mantenha a eqüidade de saber que as tradições são observadas sem serem tidas na conta de necessárias e que as consciência não são feridas, ainda que o uso dos homens mude em tal coisa.
Os bispos, entretanto, poderiam manter facilmente a obediência legitima, se não insistissem na observância de tradições que não se podem guardar de boa consciência. Mas agora exigem o celibato, e a ninguém recebem a menos que jure não querer ensinar a pura doutrina do evangelho. As nossas igrejas não pedem que os bispos, para restaurar a concórdia, abram mão da honra deles, ainda que a bons pastores conviria fazê-lo. Pedem apenas que revoguem cargas injustas que são novas e foram recebidas contrariamente ao costume da igreja católica. Talvez de início essas constituições hajam tido razões plausíveis, as quais, todavia, em tempos ulteriores já não são congruentes. Também é manifesto que algumas foram recebidas devido a erro. Conviria, por isso, à clemência dos bispos mitigá-las agora, pois tal mudança não quebra a unidade da igreja. Porque muitas tradições humanas foram mudadas com o passar do tempo, conforme mostram os próprios cânones. Se, porém, não se pode obter uma relaxação quanto às observâncias que não se podem cumprir sem pecados, então devemos seguir a norma apostólica que ordena obedecer antes a Deus que aos homens.
Pedro proíbe que os bispos dominem e coajam as igrejas. O de que se trata agora não é que os bispos abram mão de sua dominação. Pede-se, isto sim, apenas o seguinte: que permitam seja o evangelho ensinado de maneira pura e relaxem algumas poucas observâncias que não se podem observar sem pecado. Se não fizerem isso, então vejam lá eles mesmos como responderão perante Deus pelo fato de com essas teimosia darem causa a cisma.
Conclusão
Recenseamos os artigos precípuos sobre os quais, manifestamente, há controvérsia. Embora se pudesse haver falado de maior número de abusos, incluímos, contudo, para evitar maiores delongas, apenas os principais. Houve grandes queixas sobre indulgências, peregrinações, abuso em matéria de excomunhão. As paróquias eram vexadas de muitas maneiras por pregadores de indulgências. Infinitas contendas houve entre pastores e monges sobre direito paroquial, confissões, sepultamentos e com respeito a inumeráveis outras coisas. Passamos por alto assuntos dessa natureza, para que os pontos principais dessa matéria, concisamente propostos, mais facilmente pudessem ser entendidos. E nada se disse ou recenseou aqui no intuito de insultar a quem quer que fosse. Mencionou-se apenas aquilo que, segundo nos parecia, era necessário dizer, a fim de que se pudesse compreender que, em doutrina e cerimônias, entre nós nada se recebeu que seja contra a Escritura ou a igreja católica. Porque é manifesto que nos acautelamos diligentissimamente para que em nossas igrejas não se insinuassem dogmas novos e ímpios.
Seguindo o edito da Majestade Imperial, quisemos apresentar os artigos acima, para que neles se mostrasse nossa confissão e se discernisse a suma da doutrina dos que ensinam entre nós. Caso falte algo nesse confissão, estamos prontos, se Deus quiser, a dar informação mais ampla, segundo as Escrituras.
De vossa Majestade Imperial súditos fiéis:
João, duque da Saxônia, eleitor
Jorge, Margrave de Brandenburgo
Ernesto, de próprio punho
Filipe, Landgrave de Hesse, subscreveu
João Frederico, Duque da Saxônia
Francisco, Duque de Luneburgo
Wolfgang, Príncipe de Anhalt
Senado e magistratura de Nurembergue
Senado de Reutlingen.

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